"Quando as mulheres ainda não tinham potes para cozinhar, houve uma moça
que se lamentou porque não tinha onde preparar a chicha. A mãe ficou com pena dela e avisou: “ Vou virar barro para você poder fazer um pote. Você me emborca decabeça para baixo e minha xoxota vai ser o gargalo do pote. Você me lava bem por dentro, depois me põe no fogo para cozinhar a chicha. Quando a água secar, filhinha, eu aviso e você põe mais água para o meu coração não queimar.”
A moça obedeceu direitinho e durante muitos dias ficou usando a mãe-pote para
cozinhar a chicha. Quando terminava, punha-a no jirau para esfriar, lavava bem a panela e a mãe virava gente de novo. O marido desta moça, adorava a chicha que era preparada escondido dele. Acontece que ele tinha um xodó, uma namorada ciumenta, que foi espiar a mãe e a filha para descobrir como faziam a chicha mais gostosa da aldeia. Despeitada, ela correu com a denúncia: “ Você gosta mais da chicha da tua mulher do que da minha, mas ela cozinha tua comida dentro da xoxota da tua sogra!”
O rapaz, enfurecido, foi tirar satisfação com a mulher. Encontrou-a fazendo a
chicha e com raiva chutou a panela-sogra que estava no fogo. O pote quebrou-se. A filha tentou juntar os cacos desesperada, quis colar, a mãe gemendo de dor. “ Minha filha, teu marido me esmigalhou, não posso mais morar aqui. Vou embora para ondehá barro, para continuar a fazer potes para você”.
A moça não se consolava com a falta da mãe, que vez por outra voltava a ser
gente para conversar e orientá-la. Um dia, a mãe tornou-se toda de barro. A moça entrou no lamaçal e foi retirando potes, panelas belíssimas, vasos, tudo prontinho.
Escondeu no mato e foi usando um por um. As mulheres da aldeia descobriram e foram pedir também. A mãe dava, mas nunca eram peças tão bonitas como aquelas que ela oferecia à filha. Depois de dar tanta cerâmica, a mãe foi para bem longe. No barreiro só restou um barro sujo, que as outras mulheres usariam para fabricar suas próprias panelas. Quanto à filha, aos poucos ia trazendo do mato as magníficas peças, presentes de sua mãe que as outras invejariam."
No mito Tucuna o amor entre mãe e filha tem poder para gerar as mais belas cerâmicas. Mas a filha deve passar pela prova da coragem para desfrutar dos presentes de sua mãe. A inveja das outras mulheres, assim como o despeito da amante do marido e a raiva dele são reações explosivas que ela deve aprender
a contornar. No fundo, é o seu próprio fogo emocional que ela vai dominando para que sua arte tenha sucesso. Quem possui o segredo do uso do fogo emocional desperta a inveja e o ciúme das outras oleiras, que não conseguem fazer potes sem quebrá-los durante a queima. A quebra das peças representa uma alegoria da explosividade emocional que elas não conseguem evitar.
A forma receptiva do órgão feminino permite comparações com o vaso alquímico, que vai aquecer no fogo da transmutação interior. Canal vaginal, útero e trompas são órgãos que corporificam a imagem arquetípica da receptividade.
Ser continente é um dos atributos do princípio de Eros que tem sido algumas
vezes mal interpretado por apressadas que vêem na receptividade a negação da atividade feminina. Mas ser continente não quer dizer ser amorfo, sem cheiro nem sabor, sobretudo sem calor. Ao contrário, o vaso alquímico e sua fonte
de calor são uma e a mesma unidade subtende-se na imagem dos órgãos da
mulher. “ O conjunto de órgãos constituídos pela vagina, útero e trompas é um
vaso perfeito, um autêntico recipiente, predestinado a recolher a substância
fecundante e a fazê-la amadurecer, em união com a própria substância feminina”
(Penna,1989 p.189) O que não transparece no mito do Gênesis, está palpitante na tradição indígena que mostra a intensidade da energia psíquica fluindo através das sensações e dos sentimentos durante- o processo de criação.
A ARTE EMOCIONAL DAS CERAMISTAS - LUCY PENNA
Publicado em Junguiana, v.23 Sociedade Brasileira de Psicologia
Analítica p. 78-86, 2005
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