Duas manhãs por semana preciso fazer uma viagem na hora do rush durante a qual, ao aproximar-se de um túnel, as quatro pistas convergem para duas. A mudança é anunciada por uma seqüência de sinais — "DUAS PISTAS À ESQUERDA FECHADAS A 1 KM", "DUAS PISTAS À ESQUERDA FECHADAS A 500 METROS" e "DUAS PISTAS À ESQUERDA FECHADAS, PASSE PARA A DIREITA". A fusão final é reforçada pelas barreiras que eliminam as duas pistas à esquerda e pela realidade do túnel de duas pistas que se aproxima.
Quando comecei a fazer essa viagem, eu costumava usar uma das duas pistas à direita, já que elas levavam direto ao túnel. Como a segunda delas tinha o problema da entrada de trafego lateral, eu geralmente ficava na primeira. Se acaso estivesse numa das pistas à esquerda, logo que via o primeiro sinal de aviso eu passava para a direita para entrar diretamente no túnel.
Nessa época, mesmo que tivesse pensado no assunto, eu não teria visto nada notável na minha pronta obediência aos sinais. Eu não estava experimentando uma escolha; eu simplesmente achava que as pessoas obedecem aos sinais. Refletindo sobre isso mais tarde, vejo minha obediência num contexto psicológico. Eu era o caçula da família, filho de um professor, um bom menino que não causava problemas, orientado para fazer a coisa certa e se dar bem na vida. Fui educado para ser um cidadão responsável e respeitador da lei. Quebrar as regras estabelecidas, em qualquer nível, não seria o meu caminho.
O problema naquela rodovia era que, enquanto eu permanecia à direita esperando (com paciência ou sem ela) minha vez de atravessar o túnel, eu notava que alguns cidadãos menos conscienciosos continuavam pelas pistas da esquerda o mais possível até serem fisicamente forçados a passar para a direita — e então eles se amontoavam na minha pista, à minha frente. Pior ainda; às vezes eu via pelo retrovisor que algum transgressor psicopata, ao aproximar-se do gargalo, saía da minha pista para as pistas vazias da esquerda, passava por mim acelerado e ganhava uma pequena vantagem antes de precisar voltar para a pista da direita.
Fiquei surpreso com o que essa situação despertou em mim. De início, eu ficava apenas chateado com o espetáculo de outras pessoas que, sem o estorvo de um su-perego apropriado, tiravam proveito de agir errado enquanto eu agia certo. Mas fui ficando cada vez mais ressentido com isso. Minha sensibilidade de caçula à injustiça foi ativada. Eles estavam levando vantagem ao fazer algo que me era proibido.
Eu sentia raiva, não só dos intrometidos como também dos motociclistas da Polícia Rodoviária; eu achava que eles deveriam impedir esse tipo de comportamento em vez de ficar passando multas por excesso de velocidade lá atrás na rodovia. Descobri que eu era espantosamente competitivo. Com freqüência, os agressores dirigiam Porsches ou BMWs, ou então eram cowboys em pequenas pickups que, quando sem carga, são muito velozes. Embora meu sedã seja espaçoso e faça 12 quilômetros por litro, ele decididamente não é uma nave espacial. Inferiorizado e invejoso, eu fantasiava sobre potentes motores e turbos. Incapaz de competir diretamente, eu expressava minha raiva de um modo passivo: tentava impedir que os bandidos cortassem na minha frente. Tornei-me um perito na arte de dirigir pára-choque com pára-choque, que não deixava nenhum espaço para intrusos entrarem. Eu sabia que essa arte me custava a minha embreagem, mas a satisfação de frustrar os ambiciosos valia a pena.
Eu ainda não havia questionado a moralidade da situação. Estava claro que aquelas pessoas nas pistas da esquerda, passando por mim e se atropelando à minha frente, eram bandidos. Minha posição era moralmente correta e, se o mundo fosse justo, os outros se comportariam como eu. O problema é que o mundo não é justo e os outros não se comportavam como eu. Ou melhor, a maior parte dos motoristas se comportava como eu — eu fazia parte da maioria que respeita a lei —, mas esse fato não apagava meus sentimentos em relação aos demais. Minha indignação era justa: se o meu contra-ataque acabou se tornando um tanto repulsivo, eles mereciam ainda pior pelas suas transgressões.
Eu poderia ter evitado esse problema todo saindo dez minutos mais cedo, antes que o engarrafamento se formasse, mas geralmente eu saía de casa no último minuto possível, cheio de sensações de culpa por talvez chegar atrasado à minha primeira consulta do dia. Eu queria atravessar o túnel e não via nenhuma razão para que os outros o atravessassem antes de mim por meio de trapaças. Talvez eu também pensasse em trapacear, mas sentia uma gratificante superioridade moral e uma orgulhosa satisfação comigo mesmo por persistir na virtude e resistir à tentação. Mas, naquelas condições, a virtude custava caro; eu estava perdendo — eu era uma vítima virtuosa.
Acho que aquilo que acabou acontecendo surgiu da combinação simultânea de um atraso maior com a raiva e a inveja acumuladas, o colapso moral e uma certa curiosidade sobre a vida nas pistas de alta velocidade. Uma amanhã passei deliberadamente para a última pista da esquerda e lá fiquei tanto quanto possível. Então passei para a outra pista, ainda na esquerda, e lá permaneci o máximo que me foi possível. Finalmente, entrei na minha pista de sempre e atravessei o túnel.
Não posso dizer que "me senti o máximo", ou algo igualmente simples. Eu tinha sobrepujado o inimigo, mas o inimigo ainda era o inimigo. Eu estava desagradavelmente ciente de estar violando meus próprios princípios por um ganho imediato; eu sabia que tinha "me vendido". Na verdade, eu realmente preferia os cidadãos bem comportados, em cuja pista eu agora me insinuava, e que me encaravam com a mesma justa hostilidade que eu próprio sentia ainda na véspera. Por um lado, eu estava em conflito com o meu novo status de fora-da-lei. Por outro, a sensação de culpa não era tão má assim, E a verdade é que atravessei o túnel bem mais depressa.
A partir daí, aconteceram muitas coisas interessantes. Fiz experiências deliberadas com as quatro pistas, testando-as psicologicamente e vendo como cada uma delas funcionava, como o mundo parecia quando visto a partir de cada perspectiva. Quando não estou conscientemente fazendo experiências, aproximo-me do engarrafamento pela última pista da esquerda porque ela funciona melhor; ela é mais rápida. Quando ajo assim, torno-me membro de uma minoria relativamente pequena. A maioria dos motoristas nem sequer espera pelos sinais que mandam passar para a direita; já lá atrás, eles se colocam nas duas pistas que levam direto ao túnel. Conhecendo o percurso, é possível que eles nunca usem as pistas da esquerda para não precisarem sair delas ao se aproximarem do túnel. Isso é o que eu costumava fazer. Examinando as coisas a partir da minha nova posição de superioridade, isso me parece uma inacreditável restrição a mim mesmo. Como podem existir tantos cidadãos desnecessariamente bons quando está tão claro que é uma vantagem não ser bom?
Na verdade, o comportamento virtuoso dessa maioria moral libera as pistas da esquerda para que possamos praticar nossas sociopatias. Se aquelas quatro pistas fossem utilizadas de modo uniforme, não faria sentido algum ficar "costurando". Os motoristas que já passaram para a direita criam a oportunidade e a tentação para que avancemos o mais possível pela esquerda antes de obedecermos os sinais. Somos os dois lados de uma mesma moeda: eles, os anjos, nós, os demônios, todos complementares e interdependentes. Precisamos que eles sejam bons e nos ofereçam a nossa oportunidade; eles precisam que nós sejamos maus para que possam nos censurar, se sentirem superiores e nos punirem com a exclusão.
Quando brinco de demônio e olho à direita para os motoristas que estou ultrapassando, tenho a consciência de uma sensação de perda, percebo que sacrifiquei algo quando fugi para a liberdade do meu interesse próprio. Não duvido que foi por isso que levei tanto tempo para perder minha virtude. Lembro, com uma certa nostalgia, aquela sensação agradável de comunidade, retidão e auto-estima que eu desfrutava quando ainda era uma ovelha — antes de me transformar num lobo; lembro como eu desprezava aqueles anarquistas depravados que passavam voando à minha esquerda. Mas quando tento recuperar minha pureza moral nas pistas de ovelhas, lembro-me de um adesivo que dizia: "A NOSTALGIA NÃO É MAIS O QUE COSTUMAVA SER." A satisfação da virtude não paga o preço de sermos passados para trás.
Contudo, o mais interessante para mim foi que essa situação acabou por deixar de ser um dilema moral; ela foi despojada de todo vício e virtude. Percebo que esse engarrafamento no túnel é apenas um lugar onde quatro pistas se estreitam em duas; sinto que nada existe de certo ou de errado, de bom ou de mau, na fusão dessas quatro pistas. Antes, quando experimentava esse engarrafamento como uma questão ética, eu estava interpretando, eu estava me projetando. Defini a mim mesmo como a vítima virtuosa; defini os motoristas que me ultrapassavam como "bandidos" — agressivos, egoístas, sem sentimentos comunitários, bem-sucedidos e invejáveis. Agora, quando os motoristas da direita me lançam olhares furiosos no momento em que invado a pista deles, posso avaliar sua raiva a partir da memória da minha própria experiência e, por isso, não fico com raiva quando eles tentam impedir que eu entre na sua frente. Pelo contrário, fico calmo e acho tudo trivial. Mas eles parecem bastante estranhos, transformando num jogo de moralidade uma simples fusão de quatro pistas em duas. O mais divertido é que tento não rir quando eles provam a sua virtude, sua masculinidade e seu patriotismo obrigando-me a entrar atrás deles, porque talvez alguns deles estejam armados.
Parece que não consigo mais projetar aquele filme de guerra sobre essa tela específica. Precisarei encontrar um novo palco onde distinguir os mocinhos dos bandidos; não me sinto nem um mocinho nem um bandido. Preciso de um novo adesivo: FÁCIL NA FUSÃO.
( do livro : AO ENCONTRO DA SOMBRA)
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