Era uma cena bonita: às 14h45, na rodoviária de Campinas, um casal impedia o trânsito beijando-se dentro de um carro, por mais de cinco minutos. Atrás deles, uma fila de motoristas impacientes buzinava, como se o barulho fosse incomodar os apaixonados que protagonizavam, na verdade, uma seqüência de beijos. Nem Hollywood foi capaz de cena tão romântica.
Aquilo era mais que um filme, pensei de imediato numa crônica se desenrolando ao vivo. Eles se beijavam e, quando os espectadores achavam que a despedida tinha terminado, um olhava nos olhos do outro e recomeçava o beijo, depois mais outro. Os dois completamente alheios ao que se passava em volta, não estavam nem aí para o mau-humor de quem não ama e, até por isso, detesta cenas de amor.
Mas havia também quem compreendia e curtia aquela paixão. Logo atrás deles, no primeiro carro, uma mulher e um rapaz riam da cena sem buzinar. Mãe e filho se encantavam com a visão, assim como eu, que não achava incômodo o atraso que os namorados causavam. Mil vezes uma cena de amor do que de raiva nas ruas. É preciso abrir espaço para amores vespertinos, amores matutinos, noturnos então, nem se fala. Uma tarde começar com uma visão daquelas era um sinal de sorte, presságio de um dia abençoado.
Depois que o casal se separou, ele correndo para tomar o ônibus, ela engatando a primeira marcha e saindo radiante, apesar das buzinas, pensei que o amor é um antídoto contra a pressa. Ninguém tem pressa quando ama, o amor é para ser vivido em câmera lenta, em takes que se desdobram em ternura, carinho, cuidados. Pena que nas cidades aconteçam cada vez menos filmes assim. A preferência é por mais ação e menos romance. Mais cinema americano, menos filmes de Renais, apesar da lição de beleza de “Hiroshima Mon Amour.”
Mas devido à cena, lembrei-me de quantas vezes “assisti” ao amor nas praças e avenidas. Pensei no casal que sentava-se num banco, no Calçadão de Londrina, sempre na hora do almoço. Acho que não sentiam fome, se alimentavam com olhares apaixonados, mãos nas mãos, beijos que os tiravam do chão, acho mesmo que do planeta. Os vi muitas vezes, como estes casais que se encontram nas praças das cidades do interior e ficam ali, enfeitando paisagens como as andorinhas.
Engraçado é que os pares um dia desaparecem. Perdi muitos namorados de vista e por um tempo fico indagando: Será que brigaram? Um dos dois se mudou de cidade? Ou se casaram e beijam-se longe dos olhares de quem se irrita ou se encanta com atos de ternura?
Entre as cenas mais bonitas que já vi, está a de um casal de mendigos dormindo abraçado na Concha Acústica. Feios e sujos? Nem vi. Só sabia que um cobertor escondia a pobreza e revelava o amor em dois corpos juntos, talvez para se aquecer do frio, sobretudo para se manterem unidos por amor, este mesmo que embala cenas surpreendentes, com beijos e abraços nas ruas. Quando vejo isso, sinto vontade de gritar por pura emoção: Atenção cineastas de plantão! Atenção pessoal da Kinoarte, atenção Rodrigo Grota! Uma cena de amor, digna de Resnais, está acontecendo no Calçadão de Londrina. Já pensaram num filme sobre beijos? Só beijos em longas seqüências?
Quando vejo uma cena destas, penso que a vida ainda tem a poesia que não enxergamos por pressa ou porque já não amamos. Fica assim reduzida a importância do afeto no cotidiano. Nestas horas, lembro-me de uma mensagem que cobre os muros das cidades com letras gigantes: “O amor é importante, porra!” Vi esta frase algumas vezes, como transeunte deste universo mágico que é o território urbano, este mesmo que abriga sinais de alerta e cenas para quem ainda não perdeu a esperança.
“O amor é importante” e vi sua força às 14h45 em frente à rodoviária de uma grande cidade, quando um beijo selou o dia apesar da irritação de quem já não tem olhos para a poesia de um ato que parou o trânsito. Depois do beijo, a tarde continuou, as pessoas continuaram sua luta celebrando a pressa. Mas para mim, o dia não era mais o mesmo.
Célia Musilli
(Crônica publicada hoje na Folha de Londrina)
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